domingo, 2 de janeiro de 2011

Lesma-do-mar: Colorida, viscosa e talvez terapêutica


Da ilha do Faial chegou uma surpresa: o Porto da Horta está pejado de uma lesma-do-mar, onde se isolou uma molécula nova. Os primeiros testes indicam que tem propriedades farmacêuticas. Se daqui surgir uma patente, as populações locais deveriam receber parte dos benefícios? Há uma discussão em curso sobre isto a nível mundial.
Parece feita de veludo e, só de a ver em fotografias, apetece tocar-lhe para confirmar se é macia. E as suas cores, um azul e um verde vistosos, são um aviso aos predadores, como se gritasse aos quatro ventos para não a comerem, que é tóxica. O aviso é a sério: a Tambja ceutae é uma lesma-do-mar que acumula uma molécula tóxica, agora descoberta, para defesa própria.
A espécie já é conhecida há mais de 20 anos: com cerca de 2,5 centímetros de comprimento, foi encontrada pela primeira vez em 1988 em Ceuta, daí o nome científico que lhe atribuíram. Tanto em Ceuta como em Marrocos, Sul de Espanha, Canárias, Cabo Verde, Madeira e Açores, os locais onde entretanto tem sido observada, nunca primou pela abundância.
Mas em Agosto de 2007 as coisas mudaram: numa campanha internacional de estudo das lesmasdo- mar do Atlântico, que incluiu o biólogo português Gonçalo Calado e que passou por locais como as Bermudas ou o Brasil, os cientistas mergulharam numa zona mesmo à mão de semear e deram de caras com ela. Estava colada à ilha do Faial, a pouca profundidade. 
Por que é que há ali tantas Tambja ceutae? A resposta encontra-se no que lhe serve de alimento. Ela come um briozoário, animal que vive agarrado ao fundo por um pé (parece um raminho) e que se alimenta de partículas que fi ltram da água. Ora, esse briozoário, da espécie Bugula dentata, existe em grande quantidade nas paredes do Porto da Horta. “E ela cresce e multiplica-se lá. Facilmente se localizam centenas de exemplares.” 
Os exemplares recolhidos foram congelados e encaminhados para um laboratório em Itália, para uma série de estudos. “Só agora foi possível obtê-la em quantidade sufi ciente para os estudos químicos”, explica Gonçalo Calado.

Guerra contra o cancro

Os especialistas de lesmas-do-mar (ou nudibrânquios, como lhes chamam) sabem que este grupo de animais foi desenvolvendo a capacidade de fabrico ou de acumulação de substâncias químicas que afastam, ou até matam, os predadores. Não têm concha, o que à partida é uma desvantagem, mas arranjaram outros meios de protecção – avançaram para a guerra química. E a coloração chamativa do corpo, associada às armas químicas que desenvolveram, funciona como um aviso aos potenciais predadores.
Cores vivas costumam ser sinónimo de lesmas tóxicas, mas também as há imitadoras: embora sejam comestíveis pelos predadores, protegem-se atrás da cópia das cores vistosas de outras espécies, essas sim indigestas.
Para os seres humanos, as armas químicas das lesmas-do-mar podem revelar-se valiosas. Vários estudos têm demonstrado que são detentoras de moléculas raras na natureza, que podem ter também interesse farmacêutico. Por exemplo, a empresa PharmaMar, em Madrid, tem estado a testar moléculas oriundas de lesmas-domar contra o cancro. A ideia não é apanhá-las até à exaustão para extrair as suas moléculas; antes é inspirar-se nessas moléculas para as fabricar em laboratório.
Aliás, a Tambja ceutae deve adquirir a molécula através da comida. “Foi detectada em pequenas quantidades no briozoário. Muito provavelmente, é o briozoário que a produz e a lesma-do-mar, ao comê-lo, guarda a molécula para a sua própria defesa”, diz Gonçalo Calado, um dos autores do artigo científico.
Os testes, ainda muito preliminares, revelaram que a tambjamina K possui actividade contra células humanas cancerosas do cólon, do útero e do cérebro, por exemplo. Dependendo da concentração, a molécula exibiu uma actividade tóxica notável tanto em células tumorais como em células não tumorais de mamíferos, concluiu a equipa no artigo, acrescentando que a tambjamina K impediu a proliferação de todas as linhas celulares testadas.
Mas desta história pode tirar-se uma lição: “O mar como fonte de substâncias naturais para uso humano ainda nos traz muitas surpresas, mesmo quando olhamos para espécies relativamente comuns e em áreas muito humanizadas, como é o caso do Porto da Horta”, sublinha o biólogo. “Quem diria que no Porto da Horta existia uma espécie com uma molécula nova, que é promissora em termos de algum tipo de tratamento?”
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(Adaptado)

Público
Catarina Fitas

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